Na semana em que Belo Horizonte fez 118 anos, os coletivos que integram a Cidade que Queremos lançou as 10 propostas para essa que é a BH que queremos.
Abaixo, o texto na íntegra.
“Infelizmente, as políticas públicas existentes hoje na cidade insistem em privilegiar interesses privados em detrimento da maioria da população. São viadutos que caem, hospitais que não ficam prontos, parques que são privatizados, habitações que faltam, transporte público cada dia mais precário. Nessa coleção de tragédias, há muito pouco a se comemorar.
Mas quando se olha para as iniciativas cidadãs e as lutas da coletividade para o bem comum, surge um horizonte de transformação. Há cada vez mais pessoas engajadas na construção de cidades melhores, em todas as áreas: habitação, mobilidade, meio ambiente, patrimônio cultural, cultura, direitos humanos, democracia real.
Durante o ano de 2015, a Cidade que Queremos se colocou como um canal de escuta e articulação de alguns desses grupos, movimentos e pessoas, visando construir reflexões e propostas para a cidade. De março a novembro, foram dezenas de encontros em praças, parques, escolas e áreas públicas. O que se vê é que cidadãs e cidadãos conhecem profundamente os problemas e demandas da cidade, muito mais do que a maior parte dos governantes e legisladores.
Reunimos dez pontos que sintetizam as principais questões abordadas ao longo do ano. São ideias de pessoas que pensam a cidade no seu dia a dia e praticam a política real da convivência democrática, para muito além dos partidos.
1_ livre ocupação dos espaços públicos
Há quem veja a cidade como um conjunto de condomínios, em que as áreas públicas são mera conexão entre espaços privados. Quando as pessoas se reúnem e confrontam essa ordem, muitas vezes são reprimidas e sofrem violência policial.
Mas as pessoas querem cada vez mais conviver nas ruas, nas praças, nos parques. E as iniciativas pela ocupação livre e democrática dos espaços explodem. A cidade que todas e todos queremos incentiva e fortalece a ocupação das ruas, como os diversos encontros ligados à cultura hip hop, o carnaval de rua, as bicicletadas, a praia da estação, a gaymada e toda e qualquer celebração vinda das pessoas e para as pessoas.
2_ transporte público, gratuito e de qualidade
A passagem de ônibus aumentou pela terceira vez em menos de dois anos. Hoje Belo Horizonte tem uma das passagens mais caras do mundo em relação ao poder de compra da população. Mas isso não significa que tenhamos um serviço de qualidade. Os ônibus demoram cada vez mais a passar e ficam cada vez mais lotados. Temos uma frota inadequada para transportar pessoas, inacessível e rude.
A solução para o trânsito e a mobilidade só virá com investimento relevante em transporte coletivo. É urgente a criação de um sistema de mobilidade urbana transparente, com ampla participação popular e com um fundo para subsídio da tarifa que garanta o acesso democrático à cidade por toda a população.
3_ menos viadutos, mais metrô
Nos últimos anos, a maior parte dos recursos investidos em mobilidade em Belo Horizonte foram para ampliar espaços para carros. Alargamento de avenidas, viadutos e trincheiras deixam a cidade mais cinza, mais quente e não resolvem o problema do trânsito. Em suma, trata-se de enxugar gelo e encher os bolsos de empreiteiras amigas do poder.
De repente, um viaduto cai. Além de expressar a incompetência e o descaso da gestão pública, evidencia que a obra não faz falta alguma. O trânsito onde o viaduto caiu vai bem, de maneira similar aos locais em que outros viadutos (ainda) não caíram.
Enquanto isso, obras que transformariam de fato a mobilidade urbana, como investimentos no metrô, são sempre postergadas (a não ser durante as eleições, quando sondagens despontam inesperadamente). Os recursos gastos em obras rodoviaristas nos últimos anos poderiam ter viabilizado o metrô do Barreiro, uma linha urgente e de custo baixo, já que boa parte de sua infraestrutura já existe.
4_ moradia é direito
O direito à moradia é previsto na Constituição. No entanto, o poder público está longe de sanar o déficit habitacional. Em Belo Horizonte, são 148.000 famílias sem moradia digna, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). No ritmo atual, quem está no fim da fila, aguardará 175 anos para conseguir a casa própria.
De 2008 a 2013, a média da inflação no país foi de 39,67%. No mesmo período, os aluguéis subiram cerca de 100% em muitas regiões metropolitanas. Para a maior parte da população, isso gerou um aluguel impagável, o que levou pessoas a saírem de suas casas para viverem nas ruas ou nas ocupações urbanas, que têm crescido nos últimos anos em BH.
A cidade deve ter moradia digna para todas e todos. Mais ainda, é fundamental garantir o direito à cidade, com políticas habitacionais que não gerem guetos, que ofereçam infraestrutura urbana, serviços públicos, lazer. A cidade que urge precisa ocupar os imóveis ociosos no centro, reconhecer as ocupações urbanas e implementar programas de habitação autogestionados, inclusivos e transparentes. A cidade que queremos deve tratar com dignidade e respeito as/os moradoras/es das ocupações urbanas, oferecendo condições seguras e justas nas negociações que envolvem seu direito à moradia.
5_ cidade pedestre, ciclável e de baixo carbono
Belo Horizonte já foi conhecida pela boa qualidade do seu ar e por ser uma cidade jardim. Na primeira metade do século passado, era destino de pessoas em tratamento de saúde. Hoje, cerca de mil pessoas morrem por ano na cidade pela poluição do ar. Outros tantos por acidentes de trânsito. Os mais expostos à poluição e aos acidentes são, mais uma vez, os mais pobres, que não estão protegidos pelo airbag, o cinto de segurança e o ar condicionado.
Reverter esse processo é urgente e tem um ponto de partida mundialmente reconhecido com eficiente: abaixar as velocidades máximas na maior parte das ruas da cidade para não mais que 30 ou 20km/h (as chamadas desvelocidades). Dessa forma, as ruas da cidade tornam-se um espaço mais democrático e passam a permitir seu uso de forma equânime por quem anda a pé, de bicicleta, skate ou em modos motorizados. O investimento em modos de mobilidade ativa (também conhecidos como não motorizados) melhora a qualidade do ar e a convivência urbana. Uma cidade com mais árvores garante a sombra e o conforto para pedestres. A cidade que queremos – porque todos somos pedestres – alarga calçadas e planta novas árvores, garante a segurança pelo convívio e pelos equipamentos públicos.
A cidade que precisamos prioriza os modos mais democráticos de deslocamento. Constrói ciclovias seguras por toda a cidade, integradas com bicicletários nas estações de metrô e ônibus. Reduz a emissão de carbono, aumenta a convivência nas ruas e a saúde da população.
6_ não às privatizações e mais parques
Recentemente, a prefeitura de Belo Horizonte propôs criar parcerias público-privadas para os parques da cidade. Argumenta que a gestão dos parques é onerosa e que há muita depredação.
No entanto, o orçamento da Fundação de Parques e Jardins, que gere todos os parques de BH, não passa de R$ 40 milhões de reais por ano, menos de 0,5% do orçamento – valor que a PBH já chegou a gastar em publicidade da própria gestão, em ano de eleições.
Não há nenhuma razão para a privatização, a não ser a de entregar um filão de mercado para algum amigo do poder. A cobrança de entrada nos parques é uma violência contra os poucos espaços de lazer coletivo que restam na cidade. Quem frequenta os parques logo vê que a cobrança dificultaria o acesso de muita gente. Talvez seja isso que o poder público queira.
Mas não vai passar. A cidade que queremos tem parques públicos sem grades, abertos à noite, para que possam ser utilizados quando a maioria das pessoas não está trabalhando. A cidade que queremos precisa do Parque Jardim América, da Mata do Planalto e das áreas verdes que ainda estão por ser feitas nos diversos bairros da capital.
7_ arte e cultura diversas e livres
A cultura e a arte não se restringem ao circuito oficial da região centro-sul nem à megalomania da virada cultural.
A cultura real e potente é feita por grupos espontâneos, muitas vezes sem fins lucrativos, em que a celebração do encontro é o mote para o desenvolvimento artístico e cultural. Não é mais tolerável que as pessoas tenham que pagar taxas e enfrentar burocracias para organizarem atividades autônomas nos espaços públicos. Tampouco é tolerável que a maior parte dos recursos de cultura sejam concentrados em poucos e grandes eventos, enquanto os centros culturais distribuídos pela cidade operam com pouquíssimos recursos.
Uma política cultural do tamanho que a cidade merece respeita e potencializa as diferentes expressões culturais, mas também se articula com outros elementos urbanos, como o transporte, a distribuição de áreas de lazer, comércio e serviços.
8_ recursos públicos para o bem comum
Já em 2010, a Prefeitura de Belo Horizonte criou a PBH Ativos S/A, uma sociedade de economia mista, que opera atividades de interesse público com recursos públicos, mas, contraditoriamente, é definida como “independente do tesouro municipal”, e não é sujeita a controle social.
Mais de R$ 150 milhões em terrenos públicos foram “doados” à PBH Ativos S/A que acaba operando como um poder paralelo à prefeitura, sem ter que se sujeitar à lei de responsabilidade fiscal. Por esse mecanismo, a prefeitura tem dilapidado o patrimônio público e se endividado.
A cidade que urge precisa fazer uma auditoria cidadã de sua dívida pública e das operações da PBH Ativos, a fim de recuperar a capacidade de investimento em políticas de interesse da população, como saúde, educação, áreas verdes, transporte e moradia.
9_ basta de racismo, machismo, transfobia e todas as formas de violência
Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil, segundo dados da Anistia Internacional. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados.
Só em Minas Gerais, 17 mulheres são mortas por dia, segundo dados do IPEA, vítimas de violência de gênero. A violência contra a população LGBT também é alarmante e naturalizada. Faltam políticas específicas para a proteção desses segmentos e sua inclusão com justiça e autonomia na sociedade e nos espaços de poder.
Tudo isso é inaceitável. É urgente um pacto amplo e empenhado de enfrentamento à violência contra as mulheres, a população LGBT e a juventude negra e pobre, que leve adiante a pauta da desmilitarização da polícia e promova políticas afirmativas e uma segurança pública cidadã, com participação e controle popular.
10_ democracia pela cidadania
Aqueles que se alternam no poder há muito já não nos representam. É hora de dar um basta à casta de políticos profissionais, seus compromissos mentirosos, suas negociatas de corredor, seus salários indecentes e seus projetos de poder que comprometem a qualidade de vida na nossa cidade.
A cidade que queremos é governada por mulheres, negras/os, trabalhadoras/es, jovens, população de rua, idosas/os, em suma, pelas pessoas comuns que buscam uma vida melhor e mais justa. Somente pela cidadania e pelo aprofundamento da democracia alguma mudança virá, com tomadas de decisão coletivas, assembleias, ferramentas de construção a distância abertas e livres.
Esses dez pontos sintetizam um pouco do que nossa cidade pode vir a ser. É preciso continuar e expandir esse debate em temas tão importantes como saúde, educação, resíduos sólidos, agricultura urbana.
É preciso continuar em busca de uma cidadania transformadora. Em busca de uma cidade melhor, mais inclusiva, mais justa, menos degradante e degradada. Porque todas e todos merecemos. Porque Belo Horizonte merece.”
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