Precisamos conversar sobre o COMPUR – Parte II

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Por Daniel Medeiros e Guilherme Tampieri

Segue o segundo texto sobre a reunião do dia 26/10/2017 do Conselho de Política Urbana de Belo Horizonte – COMPUR. No texto anterior apresentamos o Conselho e suas atribuições e começamos a discutir possibilidades de ampliar sua interface com a sociedade civil (ACESSE AQUI).

Neste texto, após relatar em linhas gerais o que aconteceu na reunião realizada dia 26 de outubro, apresentamos, na primeira parte, uma reflexão sobre a atual composição do Conselho. Na segunda parte, explicamos em maior detalhe um dos assuntos da pauta – a concessão de direito real de uso em vias com características de cul-de-sac – discutindo os potenciais impactos disso para a cidade e alguns encaminhamentos para fora do Conselho.

Sobre a reunião 237 do COMPUR, a pauta não foi longa e os temas foram pontuais e majoritariamente técnicos, ou seja, relacionados à aplicabilidade direta da legislação urbanística em vigor. Foram deliberados os cinco casos a seguir:

  1. Permissividade Viária da Rua Rosa Branca no Barreiro, pedindo para ser de uso misto. Havia um pedido de vistas[1] do representante da Câmara de Vereadores, Irlan Melo que, após estudar o caso e visitar o local, sugeriu pela aprovação. O assunto foi aprovado pelo conselho.
  2. Flexibilização de parâmetros para concessão do direito real de uso de trecho de via do Condomínio Vila Sogno no Buritis. O condomínio já tem duas guaritas e pede um pedaço de via para juntar as duas em uma. Assunto aprovado. Essa foi a pauta que motivou a segunda parte desse texto.
  3. Relatórios de Estudo de Impacto de Vizinhança do Instituto Cultural Newton Paiva Ferreira da Carlos Luz. Assunto retirado da pauta porque um dos conselheiros disse que a responsável pela relatoria não havia recebido o projeto.
  4. Monitoramento de empreendimento de impacto urbanístico Mandala Disco Club. O processo está na pauta do Conselho, entre indas e vindas, há mais de dois anos. Nesse período, foram propostas adequações para licenciamento do empreendimento. Na última reunião, o assunto foi aprovado pelo Conselho.
  5. Flexibilização de parâmetros para enquadramento das intervenções nos campos de futebol comunitários caracterizados no licenciamento urbanístico como serviços de uso coletivo com área superior a 6.000 m². A SUDECAP – Superintendência de Desenvolvimento da Capital – pede para requalificar três campos sem precisar passar por processo de licenciamento. Assunto aprovado pelo Conselho.

Não houveram maiores discordâncias sobres o temas acima e nenhuma das votações foi “apertada”, não sendo relevante aqui aprofundar nos argumentos apresentados ou no modo como votou cada conselheiro, abordagem que utilizaremos em votações mais controversas. Isso nos deixa tempo para discutir uma informação nova que passou a vigorar nesta reunião do Conselho: o perfil dos membros do COMPUR que foram indicados pelo executivo.

Lembrando, o COMPUR é formado por 16 membros, 8 da PBH e 8 dos demais setores (dois do setor técnico, dois do popular, dois do empresarial e dois representando a Câmara dos Vereadores). Os oito conselheiros dos demais setores foram eleitos recentemente, conforme registrado no texto anterior e os oito indicados pelo executivo foram revelados recentemente. Precisamos conversar sobre o perfil desses oito conselheiros da PBH que, quando votam em bloco, decidem a maior parte das votações.

Parte 1. O perfil dos conselheiros da PBH

As oito cadeiras da PBH no COMPUR mudam a cada mandato, principalmente quando há alguma mudança na organização das secretarias, por exemplo, quando a Secretaria Adjunta de Política Urbana (SMAPU) deixou de integrar a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SMDE) e passou a ser, em 2017, a Secretaria Municipal de Política Urbana (SMPU). De acordo com a regulamentação existente (Decreto número 11.925 de 18 de janeiro de 2005 e suas muitas alterações) a representação da PBH foi mudando da seguinte forma:

Figura 01. Representações do executivo no COMPUR. Decreto 11.925/2005 e suas modificações.

No entanto, para além dessa troca de nomes de secretarias, o executivo, ao escolher o tipo de representação, pode escolher também entre secretarias de tradição mais técnica e próxima às questões urbanas (meio ambiente, trânsito, infra-estrutura, habitação, entre outros), ou secretarias mais próximos ao gabinete do prefeito e suas articulações políticas (embora nada impeça que uma secretaria “técnica” assuma posturas alinhadas com decisões políticas orientadas pelo prefeito). Fato é, a decisão de composição do perfil de cada representante do COMPUR resulta de estratégias baseadas na expectativa sobre os temas potenciais que passarão pelo Conselho e na expectativa de como ele encaminhará esses temas.

Observando a nova composição do COMPUR, e considerando apenas a representação de cada órgão, ou seja, sem aprofundar no perfil do conselheiro, chama a atenção a inclusão de uma cadeira que poderíamos chamar de natureza majoritariamente política – representante do Gabinete do Prefeito – que se soma à cadeira Secretaria de Governo, inserida desde 2013. Faz coro com essa alteração a inclusão da Secretaria de Planejamento e da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, ambas de pouca tradição no trato técnico com as questões urbanas e, pode-se dizer, mais próximas às articulações político-econômicas. Essa recente alteração na composição do executivo pode estar trazendo ao COMPUR um perfil potencialmente mais alinhado às decisões do prefeito, em detrimento das decisões mais próximas do campo técnico especialista da política urbana e da representatividade política entendida em sentido amplo, ou seja, que abrigue vozes dos diferentes setores que compõem sua composição.

Mas, se essas secretarias ganharam representação no COMPUR, quais foram as secretarias que perderam cadeira? A Secretaria de Cultura, que já teve titular e suplente, agora é só suplente da Secretaria de Desenvolvimento Econômico. A Secretaria de Meio Ambiente, que também tinha titular e suplente, agora é suplente da Secretaria Municipal de Governo. As Secretarias Regionais, que tinham titular e suplente, agora não tem mais cadeira no COMPUR. A BHTRANS, a Urbel, a Sudecap e a Política Urbana (que agora inclui as antigas regulação e planejamento) continuaram com a mesma representatividade no Conselho. Em resumo, no nosso entender, cadeiras que tradicionalmente oferecem maiores resistências para flexibilizações na legislação em vigor (patrimônio histórico, preservação ambiental, habitação e interesses locais) vem perdendo espaço para setores que tradicionalmente funcionam como mediadores entre interesses pontuais e o poder público.

Neste contexto, se o atual COMPUR corre o risco de estar mais político e menos técnico-representativo (tendência a ser verificada no decorrer das decisões do conselho), consideramos importante ter especial atenção ao modo como serão encaminhadas as votações, monitorar os interesses e argumentos apresentados e construir o necessário contraponto técnico-representativo quando necessário.

Acreditamos que o maior valor do COMPUR está na possibilidade de discussão e deliberação sobre temas que impactam nossa cidade, tomados de modo intersetorial e participativo, não sendo desejável sua conversão em esfera de legitimação de decisões verticalizadas e orientadas exclusivamente pelo campo da política. No primeiro texto sobre o COMPUR apontamos para a questão da paridade e o risco de estar prejudicada pelo voto em bloco do executivo. Neste texto apontamos para o problema de excessiva politização da representação do executivo em detrimento da contribuição de secretarias especialistas e regionais, órgãos de grande importância para a garantia dos interesses públicos e cumprimento da legislação que regula e planeja nossa cidade.

Parte 2. E esse tal direito real de rua tipo cul-de-sac?

Conforme explicado, após a reunião do COMPUR ficamos interessados em discutir em maior detalhe o tema que orientou a decisão sobre a flexibilização de parâmetros para concessão do direito real de uso de trecho de via do Condomínio Vila Sogno no Buritis. O assunto foi aprovado pelo Conselho fundamentado pela Lei Municipal nº8.768/2004 que define que vias com características de cul-de-sac[2] (rua sem saída) ou similares podem ser cedidas para usufruto restrito, sendo essa cessão mediada pelo Termo de Permissão de Direito Real de Uso.

Figura 02. Esquema do pedido de reorganizar as guaritas.

De acordo com a Lei Municipal nº8.768/2004, são definidos deveres e contrapartidas aos beneficiários para com a área cedida, cabendo ainda ao poder público a coleta de lixo, a iluminação pública e a vigilância sanitária. A Lei argumenta que este tipo de procedimento visa estimular a participação da comunidade na administração pública e reduzir os gastos aos cofres públicos – economia que supostamente se baseia na segurança e manutenção privada da área. A Lei define ainda que o acesso a estas áreas pode ser restringido por guaritas, estando condicionada a entrada de qualquer pessoa à identificação. Ainda que nas alterações feitas pela lei nº10.068/2011 seja enfatizada a questão do acesso irrestrito mediante identificação, há que se considerar o peso simbólico dessas guaritas sobre a liberdade (ou não) do ir e vir. E, nestes termos, o usufruto restrito aproxima-se cada vez mais do usufruto privado destes espaços.

O primeiro beneficiado por esta lei em Belo Horizonte foi o Clube dos Caçadores no bairro Mangabeiras[3]. A partir de então houve uma disseminação desta prática em várias regiões, com a caraterística comum de serem residenciais de classes de alta renda. Entre as experiências similares, pode-se citar o residencial Granja Verde no Planalto[4], e o Fazenda da Serra no Castelo[5] e outro caso no Mangabeiras, na rua Alcides Pereira de Lima[6]. Sobre este último, houve relatos de anexação indevida do Parque Cássia Eller ao residencial de cerca de 300 casas sendo seu acesso restringido.

Uma onda contrária a este tipo de apropriação do espaço público ocorreu em 2015 através da chamada “CPI das cancelas”, que buscou avaliar irregularidades na aplicação da lei de 2008[7].  Ainda neste sentido, o relatório final da CPI deu origem ao projeto de lei 1.526/2015, cuja proposta é que as novas permissões para fechamento fossem feitas segundo lei específica.

Por outro lado, embora a legislação brasileira proibisse os condomínios fechados, os empreendimentos desse tipo utilizavam uma brecha na legislação que permitia aprovar todo o condomínio como um único lote e, depois, vender a fração ideal desse lote, semelhante à fração ideal que cada apartamento possui em um prédio. Isso é possível porque os “loteamentos fechados” ou os “condomínios de lotes” eram uma figura híbrida de loteamento e de condomínios edilícios (prédios). Enquanto os loteamentos dão origem a novas áreas que são consideradas públicas (ruas, calçadas, largos, regulamentado pela Lei 6.766/79, ou Lei de Parcelamento do Solo), os condomínios verticais geram áreas internas (ruas, espaços comuns, hall, elevadores, regulamentado pela Lei 4.591/64, ou Lei do Condomínio em Edificações ou Incorporações Imobiliárias) que são espaços privados compartilhados entre os moradores, mas não públicos.

Não havia, portanto, uma lei específica que regulamente os condomínios não verticais, sendo eles então justificados com base em ambas as leis, a depender da interpretação e interesse[8]. Na maioria dos casos, o que se alega é que como a Lei de 4.591/64 não tratava especificamente de vilas ou edifícios, mas de qualquer apropriação condominial do espaço, independentemente de seu porte, qualquer empreendimento poderia ser tratado como condomínio.

Recentemente, a Lei 13.465/2017 modifica essa situação ao criar a figura do “loteamento de acesso controlado”, ou seja, os loteamentos que, por qualquer meio (muros, portarias etc.) restringem o acesso à região loteada. A legislação é complexa e geraria uma discussão sobre o tema que ultrapassa os limites desse texto, ainda assim é possível alertar para seus impactos potenciais sobre a produção do espaço urbano e a indesejada proliferação de condomínios fechados.

Sob uma perspectiva menos legalista e mais interessada na qualidade da cidade, sabemos que o impacto de um condomínio fechado é muito maior e completamente diferente do impacto de uma torre residencial, sobretudo quando ele propõe não apenas construir uma cidade entre muros, mas murar cidades existentes, como é o caso da lei das vias com característica de cul-de-sac. Um mapeamento recente dos condomínios localizados no vetor norte da região metropolitana com base na imagem de satélite mostra como esse tipo de empreendimento promove um tipo de expansão urbana que gera diversas “ilhas” de exclusão social e, ao mesmo tempo, inúmeras barreiras que segregam pequenas comunidades e propriedades rurais.

Figura 03. Evolução das manchas de condomínio fechado no vetor norte da RMBH

FONTE: PRAXIS/UFMG,  a partir do Google Earth e Google Street View em Set/2017.

Concomitantemente à expansão dos condomínios, pode-se observar em toda a cidade uma enorme pressão pela privatização de espaços públicos em diferentes frentes: venda de terrenos públicos, fechamento de ruas, gestão privada de parques urbanos e cemitérios, entre outras. Estamos adotando cada vez mais e de modo mais natural a lógica da segurança privada e dos mecanismos de vigilância “olho vivo” para gerar controle, exclusão e retirada de usos cada vez mais “indesejados”, por exemplo, os barraqueiros no mineirão, os hippies na praça sete, os djs sob o viaduto, os sem teto nas ruas, os eventos na praça da estação, os “estranhos” na porta de casa, e por aí vai.

É com essas situações em mente – o potencial aumento dos condomínios fechados e a pressão pela privatização dos espaços públicos – que devemos não apenas discutir a tal possibilidade de concessão do direito real de uso das vias com característica de cul-de-sac, mas também nos antecipar à onda de loteamentos fechados na esteira da Lei 13.465/2017.

Lançamos essa discussão porque acreditamos que o COMPUR é o lugar onde ela deve ser enfrentada e decidida democraticamente, envolvendo o debate sobre o tipo de cidade que estamos construindo,  evitando a tendencial reação “caso a caso” ou pressionada por acordos políticos. A próxima reunião do COMPUR  estava agendada para 23 de novembro, mas foi adiada para o dia 30 de novembro de 2017.

[1] Pedido de vistas é quando algum conselheiro interrompe a votação e pede um tempo para estudar melhor o tema para, só depois, o item ser submetido para votação.

[2] O termo francês cul-de-sac, em tradução literal, significa “fundo de saco”. No urbanismo o termo se refere à vias ou becos sem saída, que tem como característica típica o balão de retorno para os automóveis. Por não ter papel de articulação viária, esse tipo de via acaba destinado a fluxo local de pedestres e automóveis ou, ainda, apropriação exclusiva de moradores do local.

[3] https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/05/16/interna_gerais,648172/pratica-comecou-no-mangabeiras.shtml

[4] http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2013/09/moradores-reclamam-de-fechamento-de-vias-publicas-em-belo-horizonte.html

[5] https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2015/05/01/interna_gerais,642997/a-novela-continua.shtml

[6] http://int-pub-coletivo-brenda-1sem-2011.blogspot.com.br/2011/02/os-donos-da-rua.html

[7] https://www.cmbh.mg.gov.br/comunica%C3%A7%C3%A3o/not%C3%ADcias/2015/08/vereadores-anunciam-cpi-para-apurar-fechamento-de-vias-p%C3%BAblicas

[8] https://jus.com.br/artigos/11636/legalidade-ou-ilegalidade-dos-loteamentos-ou-condominios-fechados

http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NTczOQ==

http://www.normaslegais.com.br/juridico/condominio-edilicio.html

 

 

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